Trabalho como psicoterapeuta por um terço do tempo em que fico acordada.
Divido meu dia em três grandes partes de oito horas. Utilizo no máximo oito horas dormindo e nas outras dezesseis fico acordada. E nestas dezesseis em vigília eu trabalho por oito e nas outras oito eu encaixo compromissos que vão desde tomar banho até ir ao salão de beleza passando por ir ao supermercado, buscar e levar o Arthur à escola e às demais atividades, fazer atividade física, ler… e ficar sem fazer nada.
Descobri recentemente que ficar sem fazer nada faz bem à saúde mental e descobri também que nos dias de hoje isso parece praticamente impossível!
O ócio não significa assistir a uma série ou ficar jogando Home Scapes no celular, mas sim se acomodar confortavelmente e ficar sem fazer nada, só pensando ou no máximo observando (o que já é fazer muita coisa).
A desintoxicação tecnológica, a permanência em silêncio e a desaceleração têm se tornado cada vez mais necessárias à nossa vida – e cada vez mais difíceis também.
Com a desculpa de ter que atender aos meus pacientes (e eu os atendo prontamente porque sei o quanto é sofrido precisar de auxílio e não ter) eu passo praticamente o tempo todo atenta às mensagens quando não estou trabalhando e isso me fez chegar à conclusão de que eu trabalho bem mais do que eu pensava.
Dia desses eu invejei meu marido que ainda está trabalhando em home office. Eu o observei trabalhando e ele trabalha muito, mas não possui todas a providencias diárias a tomar nem tantos compromissos como eu. Não que ele não faria se eu solicitasse, mas eu acho que me sinto mais na obrigação do que ele de realizá-los.
E foi pensando nessa suposta obrigação que eu devaneei dia desses quando consegui sentar-me para fazer nada. Em primeiro lugar me deparei com o patriarcado e eu vou lhes contar que eu sou vítima dele desde que nasci e que só me dei conta disso há pouco mais de dois anos. Ter nascido mulher me tirou muitos direitos e muitas regalias, além disso me colocou deveres que poderiam ter sido mais bem distribuídos. Contudo, o mais obscuro dos meus sentimentos foi o de me sentir culpada quando eu peço ao meu marido para ir buscar o Arthur, por exemplo, quando tenho a agenda mais cheia do que de costume. Tenho raiva desse mal-estar, mas ele existe e o pior: eu não consigo saber exatamente de onde ele veio, mas sei que é coisa do patriarcado. Somos submetidas a ele, mas não conseguimos perceber com clareza.
Tal qual como me sinto desconfortável quando tiro meu marido do trabalho para dar o jantar para o Arthur porque das dezoito em diante estou em horário de pico no consultório, eu percebo que ele fica absolutamente tranquilo e confortável me vendo me desdobrar para acordar o Arthur preparar o café, leva-lo à aula tênis, passar no supermercado, voltar, guardar as compras enquanto aqueço o almoço e grito para o Arthur não demorar no banho, tudo isso usando a roupa do treino das sete da manhã porque banho mesmo eu só vou tomar depois que deixar o garoto na escola e então começar a trabalhar.
Ele acha tudo isso natural e eu também, mas não é e nós precisamos entender e aceitar que não é.
Todos os dias eu reflito sobre o quanto temos que readequar e flexibilizar a nova forma de convívio entre os que decidiram viver debaixo do mesmo teto – e isso inclui os que procriaram e os que não.
Por mais que o homem invente robôs que varrem o chão, ainda há uma discrepância de grande dimensão na divisão das tarefas domésticas.
Não vivemos mais em cavernas, nós mulheres também saímos para caçar.
Não ficamos em casa, tendo assim o tempo todo que ficamos acordadas para cuidar da roupa, dos filhos, da comida…
Temos que descontruir essa sensação esquisita que nos persegue e construir uma parceria saudável e justa na administração e no cuidado com nossas cavernas contemporâneas para que o tempo de fazer nada passe a ser digno e válido, inclusive para namorar.
A razão pela qual estamos juntos não pode ser esquecida.
A evolução requer mudanças, sempre.